quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A mitificação de Milton Santos

Poucos intelectuais brasileiros foram tão mitificados quanto Milton Santos, e não só pelos geógrafos. Certa feita, abri o Estadão e dei risada ao ler o seguinte: "Ele entra para a história intelectual do País não só por antever as perversidades da globalização e os fenômenos mundiais da urbanização, mas por ter revolucionado a geografia, ao entendê-la como uma ciência humana e não natural" (Pires, 2007, p. D9).


Qualquer geógrafo sabe que é uma tolice sem tamanho dizer que, de Humboldt até o final do século XX, Milton Santos foi o primeiro a ver que a geografia não era uma ciência natural. Mas é provável que a maioria dos não geógrafos engula essa ideia, o que contribui para transformá-lo em mito aos olhos do público em geral. Ainda assim, eu não me incomodaria com a atribuição de falsos méritos intelectuais a Milton Santos se isso não tivesse também desdobramentos político-ideológicos externos à geografia. É o que se vê no texto citado, em que a elevação de Milton Santos à condição de revolucionário da geografia serve para reforçar a avaliação de que ele foi também o profeta que teria antevisto “as perversidades da globalização”...

Ora, anteviu coisa nenhuma! Bem ao contrário do que ele afirmava (e sem citar qualquer estatística), o capitalismo vem produzindo uma rápida e expressiva redução da pobreza no Brasil e no mundo. Quem tiver dúvidas disso pode conferir no post Acadêmicos podem sonegar informação? e no artigo Globalização e pobreza: o caso do Brasil. De outro lado, lembro-me muito bem que, quando frequentei a graduação, na segunda metade dos anos 1980, Milton Santos afirmava em palestras que ainda era muito cedo para cobrar sucesso do socialismo porque se tratava de uma experiência histórica com apenas 70 anos, em comparação com os 500 anos de história do capitalismo. Pouco tempo depois, entretanto, vimos a queda do Muro de Berlim, o esfacelamento da URSS e a volta de quase todos os países socialistas do mundo ao capitalismo. Ele defendia o socialismo real quando esse sistema já estava prestes a cair de podre. Isso é que é antever o futuro!

Mas pior mesmo são os intelectuais que falseiam as visões político-ideológicas de Milton Santos para pintá-lo como humanista e defensor da democracia. É o caso do cineasta Silvio Tendler (2005), que, em documentário sobre esse autor, retratou-o como formulador de uma “proposta libertária” (sic!). Ora, o fato de Milton Santos ter defendido o socialismo real sem se incomodar com o totalitarismo dos regimes comunistas já é prova cabal de desprezo pela democracia e de indiferença pelos milhões de mortos produzidos pelo socialismo. Mesmo assim, vou citar um outro testemunho pessoal para corrigir a mitificação produzida por Tendler. Quando eu era aluno de graduação, assisti a uma fala que Santos proferiu durante uma aula a convite da professora. Nessa palestra, ao ser indagado por um aluno se o regime sandinista deveria radicalizar suas ações no rumo do socialismo, apesar das resistências políticas que inevitavelmente ocorreriam, Santos respondeu que sim e acrescentou, sorrindo!, que não via outra saída a não ser usar o paredão, assertiva ilustrada com o uso dos polegares e indicadores para fazer uma mímica de metralhadora em ação. Mas alguém como ele, que acusava os intelectuais não socialistas de atuarem como mercenários do capitalismo selvagem e que vivia se dizendo defensor do “humanismo” contra o “economicismo” estava realmente em posição de fazer tais críticas de cunho ético aos seus pares, sobretudo considerando que suas teses políticas autoritárias e homicidas só costumavam ser reveladas por inteiro em eventos científicos e, mais explicitamente, no espaço fechado das salas de aula?

Nenhuma geografia merece levar tomates mais do que a geografia de Milton Santos.

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PIRES, Francisco Quinteiro. Um demolidor elegante e otimista. O Estado de São Paulo, Cultura, 02 de dezembro de 2007, p. D9.

TENDLER, Silvio. Encontro com Milton Santos ou o Mundo Global Visto do Lado de Cá. Rio de Janeiro: Caliban Produções Cinematográficas, 2005. 1 filme (89 min): son., color.; 16 mm.

7 comentários:

  1. É raro uma aluno de geografia não seguir a utopia do socialismo/comunismo, pois a propaganda feita pelos professores abarcam um mimetismo sedutor e deslumbrante que deixa qualquer um inebriado com a utopia Marxista.
    Porém, muitos negam-se a ver que o capitalismo, mesmo com seus defeitos, é o sistema que, naturalmente, vem tirando milhões de pessoas da miséria, vide o exemplo da China, que até pouco tempo era um país atrasado, miserável e que aos poucos está se tornando uma potência mundial. Ou então vamos comparar as duas Coreias Norte/Sul, onde uma estagnou na era medieval (Norte) e a outra está anos-luz à frente.
    A história dos países socialistas nós já conhecemos e sabemos que foi um fracasso, então porque insistir em um sistema que está fadado à ruína?
    Todos que criticam o capitalismo são as pessoas que vivem em países democráticos/capitalistas, mas nenhum deles abrem mão dos luxos opressores; nenhuma dessas pessoas querem passas férias na Coreia do Norte/Cuba/Venezuela, quando vão, gostam de ir se divertir na Disney opressora; em Paris etc... É muito fácil defendem um sistema para "os outros".

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  2. Professor o senhor já viu esse vídeo? O

    https://www.facebook.com/470757176305577/videos/875773099137314/?theater

    Muito bom os seus artigos. Já estou seguindo seu blog.
    Parabéns!

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    1. Obrigado pela dica de vídeo e pelas palavras de estímulo, Leandro. Eu já tinha lido sobre essa experiência socialista de que trata o vídeo, mas nunca vi ninguém citar o nome do professor, a universidade, o ano em que aconteceu, etc. Aí eu fico sem ter certeza se o experimento aconteceu mesmo ou se é um exemplo hipotético para explicar as razões do fracasso socialista.

      Seja como for, eu mesmo vivi uma experiência prática que confirma plenamente o que é dito no vídeo. Fiz um relato sobre isso no post "Alunos Preguiçosos Praticam o Socialismo Sem Saber", acessível no endereço abaixo:

      http://tomatadas.blogspot.com/2013/05/alunos-preguicosos-praticam-o.html

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  3. Muito bom o Blog, cheguei aqui justamente porque estou inconformada com essa (geomarx) estava procurando se existe geógrafos capitalistas, porque estou cansada dessa balela utópica que pregam na universidade.Estou querendo sair inércia, da preguiça intelectual e ter argumentos fortes contra esses doutrinadores bem falaciosos. Para completar estou pagando uma matéria do Mestrado Especial Geografia da fome, tema que gosto muito e estou perdida sem saber como não ser marxista com um tema tao tendencioso, se tiver dicas de livros que me ajude agradeço.

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  4. Sempre é bom conhecer gente inconformada com a hegemonia da geocrítica. Parabéns pelo desejo de ir mais longe!

    A melhor maneira de estudar o tema da fome é começar pelos indicadores de estado nutricional. No caso brasileiro, é imprescindível consultar a Pesquisa de Orçamentos Familiares - POF, do IBGE. Há também os indicadores de
    Segurança Alimentar, mas é preciso tomar muito cuidado com esses dados, pois o conceito de Segurança Alimentar é enganoso e as pesquisas que o utilizam são feitas de modo a sugerir a existência de desnutrição onde esta não existe. Eu tratei disso no livro "Por uma Crítica da Geografia Crítica" e também no texto "Agricultura e Mercado no Brasil". Aqui no blog eu também publiquei alguns posts sobre o tema (ver o marcador "Fome", na barra lateral).

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  5. Acho que tem gente que precisa voltar a ler "Por uma outra Geografia" e "Por uma outra Globalização", sua análise é rasa e de viés revisionista, digno de quem leu e não quis entender, típico de olavetes revisionistas. Sério, criticar a obrar de Miltons Santos, é digno, mas citando Narloch? hahahaha digno de pena

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    1. As críticas no post acima estão baseadas no confronto de afirmações de Milton Santos com os fatos concretos que as desmentiram. Para demonstrar que as previsões dele estariam certas, você teria de apresentar evidências empíricas que corroborassem o que ele dizia. Mas você não apresentou evidência nenhuma. Por quê? Porque os fatos provam que ele errou mesmo e você não tem como afirmar o contrário.

      Incapaz de sustentar sua crítica com fatos, você preferiu dizer que eu li mas não quis entender a obra de Santos. Mas, sendo assim, você precisava ter citado passagens da obra de Santos para provar que a minha leitura está errada. Só que você também não explicou o que estaria errado na minha leitura e nem citou passagem alguma para provar o que diz. Por quê? Porque minha leitura só estaria errada se Milton Santos não tivesse pintado um quadro catastrofista da globalização, mas você sabe muito bem que foi isso o que ele fez no livro que você mesmo cita.

      Depois, você menciona Narloch pejorativamente, mas não explica por que citar esse jornalista pesaria contra as minhas críticas a Milton Santos. Ou seja, desqualifica um autor sem apresentar qualquer argumento para justificar a desqualificação.

      Portanto, você critica o que eu escrevi sem apresentar evidências empíricas e nem citações que confirmem suas críticas, faz desqualificações sem argumentação, mas tem a cara de pau de dizer que a minha análise é que é rasa...

      Por isso mesmo, é você quem age como olavete aqui, embora com sinal ideológico invertido: faz críticas sem fundamentação e desqualificações gratuitas. Isso é que é de dar pena.

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