quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Ruy Moreira complementa Schopenhauer


O filósofo alemão Arthur Schopenhauer escreveu um livro (que não chegou a ser concluído) intitulado ironicamente The art of being right (A arte de ter razão). O título desse livro em português é muito engraçado: Como vencer um debate sem precisar ter razão. Mas o objetivo do livro não é ser uma peça de humor, já que põe a ironia à serviço de uma análise rigorosa de certas estratégias de argumentação que, em vez de serem usadas para chegar à "verdade" sobre o assunto em discussão, visam apenas conduzir o debatedor à vitória. Assim, à arte de argumentar com o objetivo de vencer por qualquer meio, lícito ou não, Schopenhauer deu o nome de "dialética erística", e a obra lista 38 estratagemas dialéticos desse tipo.


Quando eu peguei esse livro para ler, imaginei que o autor havia tentado estabelecer uma espécie de tábua completa desse tipo de estratagema, mas logo vi que não era assim. Ele nunca teve a pretensão de usar algum método ou critério lógico que pudesse abarcar todas as possibilidades de estratégias erísticas, tendo apenas listado aquelas que apareciam com grande frequência em discussões.

Seja como for, esse é um livro que tem utilidade para qualquer pessoa, pois é fácil encontrar exemplos dos estratagemas identificados pelo autor em discussões sobre todos os assuntos. E, ainda assim, sempre se encontram artifícios retóricos que, embora sejam classificáveis como erísticos, não estão contemplados na lista do livro.

Bem, é triste dizer, mas os acadêmicos brasileiros mostram-se pródigos no uso desse tipo de retórica que visa convencer a qualquer preço, sem nenhum compromisso com a busca da objetividade. Falam muito em "dialética" numa referência ao pensamento marxista e de outros autores de esquerda, mas acabam ficando quase sempre restritos à dialética erística denunciada por Schopenhauer. Foi nisso que deu rejeitar o compromisso com a objetividade sob a alegação de que tudo é ideologia; os acadêmicos se transformaram em meros militantes disfarçados de cientistas.

Realmente, alguns textos publicados neste blog tratam justamente de identificar esse tipo de argumentação no debate acadêmico, mesmo sem fazerem referências ao livro de Schopenhauer e nem se prenderem apenas aos estratagemas identificados por ele. Todavia, há muitos e muitos outros exemplos além daqueles já apontados aqui. Vejamos um estratagema dialético que não está na lista de Schopenhauer, mas que poderia perfeitamente estar:

Use ênfase e veemência no lugar de argumentação

Em 2001, durante a mesa redonda "Geografia Crítica", que fazia parte do I Colóquio Nacional de Pós-Graduação em Geografia, Paulo César da Costa Gomes definiu "doutrina" como um corpo teórico que não só apresenta explicações para determinados fenômenos como ainda procura explicar cientificamente, por meio de um desdobramento das teorias que o constituem, por que determinadas pessoas não concordam com suas explicações. É por isso que Gomes citou o marxismo como exemplo de doutrina: porque suas teorias sobre os mecanismos de reprodução da sociedade capitalista se baseiam em conceitos como "alienação", "ideologia" e "práxis", os quais servem também para explicar a não adesão dos "intelectuais burgueses" ao marxismo.

O que foi que Ruy Moreira, que compunha a mesma mesa, respondeu a isso? Ergueu aquela sua conhecida voz grave e exclamou várias vezes, com veemência: "Não é esse o Marx que eu li! Não é esse o Marx que eu conheço! Não é esse o Marx que eu tenho em minha casa, em cima da minha estante de livros!". Mas qual é o argumento contido nessas palavras para provar que o marxismo não se enquadra na definição de Gomes? Nenhum! Ele apenas usou um tom enfático e veemente para negar uma assertiva sem apresentar qualquer evidência ou argumento lógico que demonstrasse que ela estava errada.

Schopenhauer recomendava (ironicamente, é claro), que o praticante da dialética erística procurasse convencer a plateia, não o debatedor. Ruy Moreira sabe disso muito bem, e até usa recursos que esse filósofo não mencionou para chegar a tanto. Substituir argumentos por ênfase e veemência é um artifício eficaz sobretudo quando se sabe estar defendendo uma visão que já é aceita pela maioria dos ouvintes, como foi o caso naquela mesa redonda; uma vez que a geocrítica é a forma de pensamento dominante na geografia brasileira, defender Marx só com retórica é a coisa mais fácil do mundo.

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SCHOPENHAUER, A. Como vencer um debate sem precisar ter razão: em 38 estratagemas: (dialética erística). Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.

OBS.: Publicado originalmente em 06 de agosto de 2011 no site Geografia em Debate

Um comentário:

  1. Interessante o seu ponto de vista, faz com que muitas atitudes dos intelectuais de nossa época passam a fazer sentido.
    Fico triste em saber que o Ruy Moreira recorreu a esse estratagema, dos autores da Geografia Crítica, eu acredito que ele seja o que melhor "envelheceu".
    Sua obra sobre as raízes do pensamento geográfico brasileiro, que acabo de ler é bem interessante.
    Boa sorte com o blog!

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